"Eu decido se você cala a boca porque eu pago seu salário"
Que tipo de processo poderia ser movido contra um patrão que se dirigisse assim a uma empregada? E se, em resposta a uma solicitação dela, o patrão rasgasse o pedido, chamasse ela de “puta”, colocasse dentro da cueca e devolvesse com a seguinte mensagem: "tire o conteúdo, sinta o cheiro do meu saco e abra a b*** e enfie bem no meio dela"
Gilberto Miranda Junior*, Medium
Que tipo de processo poderia ser movido contra um patrão que se dirigisse assim a um empregado ou empregada? E se, antes de falar assim, diante de uma solicitação por escrito da empregada para explicar o que havia dito anteriormente, o patrão rasgasse o pedido, picasse, chamasse a empregada de “puta”, colocasse dentro da cueca os papéis picados, tirasse os papéis de dentro da cueca e colocasse em um envelope, dizendo:
Chegando minha cartinha, abre ela, tire o conteúdo, sinta aquele cheirinho do meu saco e abra a bunda e enfie bem no meio dela tudo isso que estou mandando para você.
Não se escandalize, caro leitor. Foi exatamente isso que Danilo Gentili fez e falou em um vídeo que tem sido replicado no Whatsapp e no Facebook por ocasião de uma notificação extra-judicial da Câmara dos Deputados para que Danilo explicasse alguns Twitters publicados contra a Deputada que se sentiu caluniada por ele. Ao interpretar o pedido de explicação da Câmara como uma tentativa de censura ao seu “humor”, ele levou ao pé da letra os dizeres de sua camiseta “se você não aguenta uma piada, foda-se” e partiu para o ataque.
Caberia discorrermos sobre aquela velha ladainha acerca dos ‘limites do humor’? Não penso que seja esse o caso. Não parece-me, sob qualquer parâmetro razoável que se possa olhar o caso, como se tratando de humor. Embora procurando ser irônico ou sarcástico, Danilo atacou covardemente uma pessoa, um cidadão, independente da suposta ‘relação de trabalho’ alegada. Danilo ofendeu, chamou de puta, falou para ela sentir o cheiro do seu saco e mandou ela abrir a bunda para enfiar a resposta dele dentro. Afinal, do que se trata isso? Não fossem essas as duas figuras protagonistas do caso, haveria algum tipo de indignação das pessoas? Quem está compartilhando esse vídeo e o transformando em viral parece dar anuência ao que foi feito e comemorar como se Maria do Rosário ou qualquer pessoa realmente merecesse isso. Assim foi, por essas mesmas pessoas, quando Bolsonaro disse que ela sequer mereceria ser estuprada de tão chata, como se alguma mulher, em alguma circunstância imaginável, merecesse.
Não penso que humor ou arte em geral tenha que ter limites. Não pode ter. Mas é notável a indignação causada pela performance da artista que defecou na foto do Bolsonaro e a anuência ou condescendência das pessoas diante do ato abominável e desrespeitoso com Maria do Rosário. Homens parecem gostar ou serem afeitos a mostrar suas genitálias como forma de intimidação, de humilhação ou demonstração de poder. Chamar de humor a total ultrapassagem de qualquer limite de civilidade, parece-me apenas uma forma de mascarar um ódio irracional que certos porta-vozes da classe média tem incorporado e representado sem o menor constrangimento. Mesmo que não se queira defender a Deputada, assistir algo assim (sem que se participe desse ódio irracional) é estarrecedor.
É reservado a todo e qualquer cidadão (inclusive ao Danilo Gentili) o direito a uma representação junto ao Estado para que se peça explicação acerca de afirmações proferidas por alguém sobre sua pessoa. Basta se sentir ofendido e interpretar a ofensa como calúnia ou difamação, tipificações previstas em nossas Leis. Ainda assim não é o ofendido quem decide sobre isso. Há um processo e um julgamento sobre o caso, tendo aquele que ofendeu todo o direito de justificar os motivos da ofensa ou retira-la, independente das sanções que possam advir posteriormente. Ora, onde há censura em impetrar processo legal previsto em Lei a que todos os brasileiros tem pleno direito de exercer? Para Danilo há. Logo, com base nessa distorção interpretativa, ele próprio se deu ao direito de cometer um crime, o de injúria, enquanto protestava contra aquilo que ele interpretava da ação movida pela Deputada.
Mas a questão não é só isso. Ao alegar que, pagando o salário dela, era ele quem teria o direito de mandá-la calar a boca, demonstrou ser um péssimo empregador. Empregadores não devem fazer isso e, inclusive, é passível de processo de assédio o empregador que o fizer. Um deputado não é nosso empregado, embora, obviamente, são nossos impostos que pagam seus salários. Um deputado é um empregado do Estado, contratado com a anuência da população que, à época de sua escolha, entendeu que este defenderia seus interesses. Se não defendeu, não deverá ser reeleito. Se cometeu crime, há leis para investigá-los, puni-los e levá-los a cumprir pena, como no caso do ex-Deputado e Presidente da Câmara Eduardo Cunha. Deputados não são empregados particulares de alguém, a despeito de grandes empresas poderem financiar suas campanhas e colocá-los informalmente como seus empregados particulares. Isso acontece muito, aliás. Mas é contra a lei, diga-se.
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Gentili parece entender que Deputados são cachorros particulares de quem os elege: devem levantar, pular, rolar e fingir de morto quando falam com eles. De fato muitos agem assim diante de seus financiadores ou chefes de partido, mas isso é um desvio. Danilo parece achar isso normal e reivindica seu quinhão na aberração política nacional, baseado em uma visão de relação empregado-empregador, no mínimo, anacrônica e, no limite, criminosa.
Congratulo-me com a recente decisão do STJ, cujo relator do caso foi Ribeiro Dantas, ao entender que a tipificação do crime de desacato à autoridade é incompatível com o artigo 13º da Convenção Americana de Direitos Humanos, defendendo, acima de qualquer autoridade pública, o direito inalienável de liberdade de pensamento e de expressão. Muitas denúncias foram coibidas e abafadas por conta de ameaças que colocavam a figura pública acima de seus crimes e delitos. Minas Gerais sabe bem como é isso. Mas ofensa à pessoa é diametralmente oposto disso. A liberdade de expressão não pode sobrepor o direito à dignidade e, nesse caso, parece-me estar tipificado uma das formas do crime contra a pessoa naquilo que a define como tal: sua honra.
Nada disso é sobre limites do humor, autoritarismo ou opressão do Estado sobre o indivíduo, mas sobre dignidade humana e civilidade. A direita raivosa está perdendo o sentido de civilidade e está atropelando direitos individuais em nome de direitos individuais, por que? Muito provavelmente Gentili considera Maria do Rosário menos humana que ele, menos indivíduo que ele, dando-lhe o direito de ofendê-la publicamente através de uma atitude misógina e autoritária, chamando-a de humor. Dessa mesma forma momentos inesquecíveis de barbárie foram cometidos na história da humanidade, sempre que um grupo, uma classe ou mesmo um indivíduo se sentiu superior ou mais humano que outro humano.
É disso que se trata todo esse caso!
*Gilberto Miranda Junior participa do Círculo de Polinização do RAIZ Movimento Cidadanista, é editor do Zine Filosofando na Penumbra e Revista Krinos. Escreve para as revistas Maquiavel, TrendR e Portal Literativo.
[foto: montagem lado a lado, maria e gentili]