Estudos revelam: quanto mais armas, mais mortes
Dois importantes estudos sobre violência letal alertam para a necessidade de desarmamento, mudança no modelo de intervenção policial e implementação de políticas voltadas à preservação da vida
Maria Carolina Trevisan, Brasileiros
Com uma forte indústria de armamento, o Brasil figura entre as potências mundiais na produção e comercialização de armas de fogo. É, também, o quarto maior exportador de armas leves do mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos, a Itália e a Alemanha, de acordo com a pesquisa Small Arms Survey. A atividade rendeu, em 2012, US$ 374 milhões a esse setor industrial brasileiro, superando a Federação Russa e a China.
Quanto mais armas circulando, mais mortes. O principal foco dessa violência letal continua sendo jovens, negros, com baixa escolaridade e moradores das periferias das grandes cidades – todas essas características sobrepostas. E o Brasil segue ignorando essa situação em seus planos de segurança pública. Aposta em diminuir a letalidade entre a população branca e favorecida, e se omite de proteger o grupo populacional mais vulnerável a essa condição, perpetuando um comportamento racista característico e estruturante da própria sociedade brasileira. Uma realidade histórica que se aprofunda.
Esse é o quadro revelado (mais uma vez) por duas importantes publicações lançadas esta semana: o Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), e o Mapa da Violência 2016, da Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (Flacso).
O Brasil registrou, em 2015, 59.080 homicídios. Esse número corresponde a uma taxa de 28,9 mortes a cada 100 mil habitantes, de acordo com o IPEA e com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Trata-se de um número exorbitante, que faz com que em apenas três semanas o total de assassinatos no País supere a quantidade de pessoas que foram mortas em todos os ataques terroristas no mundo em 2017”, demonstra o estudo. Para poder comparar, este ano houve 499 atentados em que morreram 3.343 pessoas. A violência no Brasil mata bem mais.
Esse dado consolida também uma mudança no patamar da violência letal e evidencia a tendência ao aumento no número de mortes por armas de fogo. Mostra que o Estatuto do Desarmamento teve papel fundamental para frear o crescimento da violência por armas de fogo entre 2003 e 2014, até estagnar os índices. Mas agora já não é suficiente. Outras medidas, especialmente políticas públicas para a juventude, precisariam se agregar à iniciativa. “Apesar do estatuto, as autoridades, em vários níveis, federal, estadual e municipal, não se organizaram para retirar a arma de fogo de circulação”, diz Daniel Cerqueira, pesquisador do IPEA e coordenador do Atlas da Violência.
O uso de armas de fogo está presente em 71,9% dos homicídios, 7 em 10 casos. A cada 1% no aumento da proliferação de armas, aumenta em 2% a taxa de homicídios, aponta o estudo. As políticas de controle de armas sancionadas em 2004 com o Estatuto do Desarmamento foram responsáveis por poupar a vida de 133.987, mostra o Mapa da Violência deste ano.
Seletividade racial
A violência letal no País tem alvo certo desde que o Brasil é Brasil. A cada 100 pessoas que sofreram homicídio em 2015, 71 eram negras, 54 eram jovens e 73 não possuíam o fundamental completo (essas características se aglutinam). Os negros possuem chances 23,5% maiores de serem assassinados, em relação a brasileiros de outras raças. O racismo histórico e a desigualdade profunda são fatores que provocam a naturalização tantas vidas perdidas.O assassinato de mulheres negras também é muito superior à mortalidade de mulheres brancas. Entre 2005 e 2015, houve aumento de 22% na mortalidade de negras, enquanto que houve redução de 7,4% na mortalidade de não negras.
“Além da herança do passado colonial e escravocrata, outros fatores podem ser mencionados na tentativa de explicar essa crescente seletividade racial da violência homicida. Em primeiro lugar, a progressiva privatização do aparelho de segurança”, explica o Mapa da Violência. “Em teoria, os setores e áreas mais abastados, geralmente brancos, têm uma dupla segurança: a pública e a privada; enquanto as menos abastadas, a das periferias, predominantemente negros, têm de se contentar com o mínimo de segurança que o Estado oferece. Um segundo fator adiciona-se e complementa o anterior: a segurança, a saúde, a educação, etc., áreas que formam parte do jogo político-eleitoral e da disputa partidária. As ações e a cobertura da segurança pública distribuem-se de forma inteiramente desigual nas diversas áreas geográficas, priorizando espaços segundo sua visibilidade política, seu impacto na opinião pública e, principalmente, na mídia, que reage de forma bem diferenciada de acordo com o status social e econômico das vítimas. Como resultado, os recursos públicos de proteção são canalizados, preferentemente, para as áreas mais abastadas, com predominância de população branca, que ostentam os benefícios de dupla segurança, pública e privada.”
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O que não se considera é que ao não tratar da violência letal, o País não consegue se desenvolver como nação. Perdemos 318 mil jovens por homicídio nos últimos 10 anos. “Falta comprometimento das autoridades”, alerta Cerqueira. Essas mortes também custam ao País 1,5% do PIB.
Outra força motriz matadora de jovens negros é a polícia, sob o argumento da “guerra às drogas”. Segundo o Atlas da Violência, em 2015 a segurança pública registrou 3.320 mortes decorrentes de intervenção policial, dado subnotificado. “Nos últimos anos, assistimos a um realinhamento a favor desse modelo de atuação policial que permanece como um dos maiores desafios de nosso processo de consolidação democrática e de um efetivo Estado de Direito”, afirma o estudo. “Não é à toa que as taxas de homicídios cometidos pela polícia no Brasil são muito altas. Trata-se de uma força policial militarizada, que vê os jovens, em especial os negros e os moradores de favelas e periferias, como potenciais inimigos que devem ser combatidos. E de uma política de “guerra às drogas” que vem sendo questionada e abandonada em várias partes do mundo”, afirma Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional.
Unidades da Federação e municípios
Em 2015, apenas 111 municípios (que corresponde a 2,0% do total de municípios, ou 19,2% da população brasileira) responderam por metade dos homicídios no Brasil e 557 municípios (10% do total) concentraram 76,5% das mortes violentas no país. Os municípios mais pacíficos se localizam no Sudeste e os mais violentos, no Nordeste. Altamira (PA) lidera a lista entre as cidades com mais de 100 mil habitantes. Entre as causas para esse quadro estão desigualdade social profunda e crescimento desordenado.
Os três estados mais violentos também estão no Nordeste: Sergipe é o primeiro da lista do Atlas da Violência, seguido por Alagoas e Ceará. Destaca-se o caso de Pernambuco, que chegou a ter a sua capital, Recife, como a campeã de homicídios. Com políticas de segurança pública voltadas para a manutenção da vida (e não para a repressão), Pernambuco teve queda de 36% na taxa de homicídios ao longo de 11 anos. Mas a violência cresceu em 2014, mostrando que para tratar dessa questão são necessárias medidas transversais em diversas áreas.