A ineficácia da matemática nas Ciências Sociais
A efetividade da matemática na formulação da física junto com a experimentação fizeram da física um protótipo de ciência. Esse sucesso nos leva a querer usar a matemática em outros campos. Contudo o céu limpo que é a física não será o mesmo para outras ciências
Roberto Kraenkel, GGN
Eugene Wigner, prêmio Nobel de física, escreveu em 1960 um artigo intitulado “A desarrazoada efetividade da matemática nas ciências naturais”, onde não podemos nos deixar de maravilhar e surpreender com o fato de que conceitos abstratos, por vezes introduzidos apenas pela coerência matemática, acabam tendo aplicações nas ciências naturais, sobretudo na física. O exemplo dado por Wigner é o dos números complexos, que são necessários para a formulação da mecânica quântica – teoria sobre a qual toma base boa parte das máquinas do mundo moderno.
E é, de fato, através das máquinas que a física se torna aplicada e se faz engenharia. Tudo isto vem do fato de que as hipóteses teóricas formuladas acabam confirmadas a posteriori por experimentação cada vez mais precisa (desnecessário dizer que isto é uma simplificação do processo científico, mas de toda forma a eficiência quotidiana da física é inconteste). A desarrazoada efetividade da matemática na formulação da física junto com a experimentação fizeram da física um protótipo de ciência.
Esse sucesso nos leva a querer usar a matemática em outras ciências. E com razão. Se tivermos conceitos quantificáveis aos quais possamos aplicar hipóteses, por que não nos utilizarmos de toda a força da construção matemática?
Contudo o céu limpo que é a física não será o mesmo para outras ciências. Quando não podemos mais experimentar à vontade, seja com seres vivos, seja com sociedades, não mais podemos ter a precisa validação de hipóteses. Isto de forma alguma quer dizer que a matemática não possa e deva ser aplicada a estes ramos do conhecimento, mas não podemos mais esperar ter os ganhos de sua famosa efetividade.
Nas ciências da vida, em especial na ecologia e na epidemiologia, temos exemplos interessantes. Estas duas sub-áreas estão mais próximas da observação do que da experimentação (neste ponto tem uma curiosa proximidade com a astronomia). Podemos quantificar matematicamente processos e postular modelos e, de fato, obtemos assim quadros conceituais que nos guiam no entendimento dos sistemas estudados. Podemos explicar grandes padrões, regularidades, podemos mesmo fazer previsões se nos utilizarmos de instrumentos estatísticos apropriados, mas – e este é o grande mas – os sistemas vivos estão todos interconectados e nós sempre fazemos simplificações – senão a teoria seria tão complexa quanto a própria realidade. Assim, o uso de instrumento matemático como gerador de verdades necessárias encontra aqui um limite que não existia na física. O mundo vivo não se amolda da mesma forma que o inanimado. Mas a consciência mesmo desta limitação permite que façamos um uso parcimonioso da matemática nas ciências da vida. Ir além, dar o passo do físico virando engenheiro, é hubris . Tentar projetar um ecossistema sempre fracassa.
Mas por fim, cheguemos às ciências sociais – e aqui quero ater-me à economia, essa que faz uso de matemática bastante avançada. O caso da economia (cujo status epistemológico como ciência autônoma é passível de debate) é diferente das ciências naturais. Especificamente, a economia não pode abrir mão de formulações normativas e de valor. De fato, ela toda se constrói sobre pressupostos ideológicos mais ou menos claros. Posto que muitas variáveis econômicas são quantificáveis, o uso do instrumento matemático é evidente. Mas – e outro grande mas – leis, modelos hipóteses – e todo o desenovelar matemático dessas – não são passíveis de real comprovação, visto serem assentados sobre valores pré-estabelecidos. Isto gera o curioso efeito de – em face a predições não confirmadas – culpar-se o objeto de estudos, chamando-o de “não-ideal”, o que constitui-se numa espécie de “estupro epistemológico”.
A mais básica das leis de mercado, a do equilíbrio de oferta e procura é totalmente arbitrária e contém pressupostos normativos. O equilíbrio é dito ótimo num mercado livre, sendo este ótimo definido quando não há como melhorar a situação de agentes do mercado sem piora de outros. Mas, veja-se como esta definição de ótimo é arbitrária. Poderíamos chamar de ótima uma situação, por exemplo num mercado imobiliário, em que todos encontram alojamento. Claro, isso é impossível num modelo de mercado feito uma feira-livre com total conhecimento de preços. Mas poderia ser postulado como “função-objetivo” a ser alcançada, num modelo em que propriedade tem função social, a circulação de capital obedece objetivos outros que o lucro.
Sim, já vejo físicos tornados economistas compararem o meu argumento anterior com o do comportamento de um “gás ideal”. Não existe gás ideal, mas- mais um mas – na física podemos experimentar e nos aproximarmos gradativamente de um gás ideal. Buscar uma verdade limite. Mas na economia, não.
Da mesma forma que na economia, procura-se hoje usar instrumentos matemáticos na sociologia e arrisca-se mesmo a discutir o emergir de regras morais. O contexto é a teoria dos jogos evolucionários, tão marcante na biologia. Mas na biologia há código genético, que existe para valer. O uso da analogia entre procriação e imitação de comportamento, que permite o uso da teoria de jogos em sociologia é porém discutível ao extremo: procriação transmite genes, já imitação transmite o que mesmo?
Do poder do discurso tecnocrático
O pior de todos os atentados ao bom entendimento do mundo é o uso da linguagem como instrumento de pura volúpia de poder. Assim vemos, na área econômica, pessoas com voz nos meios de comunicação usarem de “cala boca catedrático” , exercendo influência pelo puro discurso que julga que o matematizável é de alguma forma superior. Não nos deixemos enganar. Teorias econômicas tem pressupostos sobre como é o mundo e incorporam valores.
Diz-se que a esquerda deveria aprender mais matemática. Tanto direita quanto esquerda deveriam. A matemática, porém, é uma máquina de fazer verdades, dados certos pressupostos. São estes pressupostos que temos que discutir. Senão, o discurso de poder, na confusão do mundo mediático de hoje, usará os números como os sofistas usavam palavras. Números, tanto quanto palavras, torturados, confessam qualquer coisa.
E viva a matemática. Dizia Vito Volterra que o teorema de Euclides guarda eterna juventude. Assim seja.
E para a direita cabe dizer que não utilizem a matemática como um sofisma para ocultar um insidioso intento. Hubris leva à desgraça.