Sistema Negro: há 25 anos contando o cotidiano da periferia em forma de rima
Felipe Honorato e Luan Henrique Ferreira*, Pragmatismo Político
Há 3 semanas, mais ou menos, Costa Gold e Haikaiss, dois dos nomes mais badalados do rap nacional atualmente, fizeram um show conjunto em Campinas. Ambos os grupos subiram ao palco e agradeceram pela presença daqueles que chamaram de “seus professores” na apresentação – o Sistema Negro.
Reconhecimento merecido para aqueles que estão há um quarto de século na estrada e não só acompanharam de perto a consolidação do estilo musical criado pelo dj Kool Herc no país, como também participaram ativamente deste processo.
Estamos no lado sul de Campinas. Valinhos, cidade rica e abrigo de muitos condomínios fechados, constrasta com o lado campineiro da divisa entre os dois municípios: Jardim São Pedro, Jardim Amazonas, Vila Formosa, Jardim São Gabriel, Jardim Estoril; vizinhanças que não estão entre as mais violentas ou mais desprovidas da segunda maior região metropolitana do estado, mas que é lar de uma classe média muito batalhadora. Aqui viemos para conversar com Doctor X, responsável por escrever e produzir muitos dos sucessos do grupo.
O músico ficou por um longo período afastado do Sistema Negro: lançou dois albuns solo, gravados pela Abril Music – um deles contou com a produção de Lincoln Olivetti, fato que lembra com muito orgulho -, se aventurou na música gospel e retornou, em nome de um grande sonho – a produção do álbum que marcará os 25 anos de carreira deste histórico conjunto.
Nesta entrevista, conversamos sobre rap, racismo, política e carreira com este que é visto como o lider do Sistema Negro.
E – Gostaria que você contasse como foi a trajetória do grupo. Vocês não moravam no mesmo bairro, certo? Como o destino uniu vocês e como foi o caminhoaté se tornarem icones do rap nacional?
Doctor X – Bom, a gente se conheceu em meados de 1988, mais ou menos. Cada um fazia parte de um grupo e eu estava começando a cantar. Tinha um conhecido nosso, o Japonês, que morava aqui no bairro (Jardim Estoril) inclusive, e ele comentou com os caras a respeito de mim – “tem um cara aqui do bairro, primo do Roberval, conhecido do Marcelão, que escreve bem”. Nesta época, de 1988 para 1989, teve uma apresentação aqui na sede do bairro e os caras, depois do comentário do Japonês, vieram me ver tocar – o Kid Nice e o Tim, que então tinham um grupo e cantavam juntos. O Kid veio, gostou e depois da minha apresentação nós começamos a trocar idéia e ele ficou de me apresentar para o Eazy Down, pois iria haver um concurso da Kaskata´s (famosa gravadora de rap, soul e R&B) em Santo André. A partir daí nós começamos a ensaiar e, naquele tempo, o grupo nem chamava Sistema Negro… chamava “The Bronx Mcs”, se eu não estou enganado, pois, na época, todos os nomes dos grupos de rap eram americanos. Nós somos deste tempo em que o rap era dominado por esta fita dos americanos. Então nós começamos a ensaiar, entramos no concurso da Kaskata´s, meio que sem pretensão nenhuma e de quase 400 e poucas bandas, nós ficamos entre os 10 melhores e ganhamos nossa primeira gravação, do LP “Vozes de Rua”. E foi assim que se formou o Sistema Negro.
E – O nome artístico de vocês, Doctor X e Eazy Down, tem inspiração em Malcolm X e Eazy-E?
Doctor X – O meu nome sim, tem tudo a ver, porque, como falei, era uma época americana do rap e eu pensei “que nome vou por?”; naquele tempo, eu era muito fã do Ice-T e do King T. No começo, meu nome artístico era Mc T, por que o pessoal da minha família me chama de “Ti” e tal… mas aí eu falei “pô, este nome não vai ser legal”. Aí saiu o filme sobre o Malcolm X, o Public Enemy estava estourado também, eu resolvi mudar e acabou ficando Doctor X. Mas o do Eazy Down eu acredito que não tenha nenhum ligação com o Eazy-E não.
Creio que tenha sido natural, ele acabou adotando este nome, mas não sei como foi isso… O Kid, que é Kid Nice, vem de “D- Nice”, que cantava no Boogie Down Productions – tinha lá a música “My name is D-Nice” e ele acabou adotando o Kid Nice. E tinha também o Master Jay, que era o dj. Na época todo dj colocava “jay” no nome e ele colocou “Master Jay” e ficou.
E – Influência do Jam Master Jay, do Run DMC?
Doctor X – Também! Ele teve influência sim.
E – Há um tempo, o El País em português fez um artigo grande sobre outro cara que é destaque no rap – o Rincon Sapiência. Nessa reportagem, em um momento, o Sistema Negro, junto com Racionais e DMN, foi colocado como exemplo do rap “revolucionário” que era feito antigamente, com letras que continham duras críticas sociais. De onde vinha a inspiração para vocês comporem estas letras tão engajadas? Elas eram um espelho do cotidiano dos membros do grupo ou vocês pegavam histórias que aconteciam pelo mundo e transformavam isto em arte?
Doctor X – Eu acho que, na verdade, o Sistem Negro já existe há quase 30 anos, né? O rap, na nossa época, ele tinha esta responsabilidade, vamos dizer assim, de ser a voz da periferia, de poder chegar nas pessoas falando o que nós vivíamos, não cantar o que existe hoje no rap, que tem muita coisa que a gente sabe que é mentira… eu não vou nem questionar talento de pessoas, porque acho que cada um tem aquilo que merece ter; tem muitos grupos que estão fazendo sucesso hoje e eu até me questionava “pô, mas como é que os caras tão e a gente não tá?”, “Por que os caras estão fazendo sucesso?”, “Por que eu não falei sobre isso?”, começa até a bater aquele arrependimento… mas acho que a gente vive hoje em uma época diferente. Na nossa época, nós tínhamos que falar sobre isso, porque a gente sofria isso na péle – não que hoje não se sofra, mas hoje está mais fácil qualquer um cantar, através, por exemplo, da internet, pois estamos aqui, gravando, e daqui 10, 15 minutos esta entrevista tá no ar! No nosso tempo era tudo diferente. Pra gente ir pra São Paulo, a gente tinha de ir até a rodoviária pegar um ônibus, nós não tínhamos condições financeiras pra pegar o carro e ir dirigindo até São Paulo; pra se gravar, havia o tape de rolo, tudo era mais dificíl. Acho que por isso nós somos lembrados até hoje, porque sempre fomos um grupo verdadeiro, entendeu? Nunca fugimos da nossa responsabilidade social e acho que a gente só fez tanto sucesso porque sempre contamos o que era a verdade. Isto as pessoas sentem um pouco de falta hoje em dia. Hoje as músicas são miojo: em 2 minutos você faz, comeu e já era; daqui a pouco você tá com fome de novo. Somos de um tempo onde era preciso falar a verdade e viver as coisas pra poder ser espelho para uma juventude tão perdida.
E – Você tem idéia da magnetude, da quantidade de jovens que vocês influenciaram, com estas letras engajadas, nestes anos todos de carreira? Como o grupo vê isto?
Doctor X – É impressionante! Eu tenho 44 anos e, mais ou menos, 28 anos de rap, vivendo intensamente isto, e eu me surpeendo ainda de ver, numa rede social, as pessoas me chamarem e falarem “meu filho gosta de vocês”, “a música de vocês me tirou de tal situação”, “a música de vocês me fez dar valor pro meu pai, pra minha mãe”, “a música de vocês me fez ser uma pessoa melhor”, “a música de vocês me fez evitar as drogas”, “me fez enxergar que o crime não compensa”. Isso pra gente não tem preço, é algo que é o combustível que me mantém focado pra tentar ser eu mesmo, porque as pessoas estão cansadas de ver super heróis que não existem… não nos achamos mais do que ninguém, mas entendemos e eu fico me perguntando “poxa, como eu consegui escrever uma letra assim, há tantos anos, com esse poder?” e eu não consigo entender… mas tudo tem um porquê e isso está dentro da minha responsabilidade como mc, que é de falar a verdade, e do grupo. Creio que seja por isso que estamos aí, às vésperas de lançar um sétimo album de inéditas, com muita gente ansiosa e esperando pra ver o que vamos cantar. Que as pessoas não esperem um Sistema Negro dos anos 90, pois tudo mudou: a situação social, política, econômica do país continua a mesma, mas os timbres, a tendência musical é outra, então estamos tentando escrever o que nós éramos nos anos 90, com mix atuais e batidas novas, pra poder agradar todo mundo. Que as pessoas possam curtir o som e também entender o que a gente tá falando.
E – Todo estilo musical que não possui laços com as elites sofre para ser aceito, bem quisto. Isto aconteceu com o Blues, o Jazz, o Reggae, e o samba, inclusive, chegou a ser criminalizado no Brasil. Quando vocês começaram, como era ser rapper no Brasil? Como era a imagem do rap?
Doctor X – Cara, a gente vem de uma época dificil. Já havíamos passado pela ditadura, mas o rap era visto como música de malandro. Nós até fizemos uma música que fala que o rap era “música de malandro, coisa de desesperado” e havia uma richa entre o samba e o rap, as rádios não tocavam o rap, às vezes não davam o espaço que o rap merecia e o samba tinha até demais. A gente chegou até, neste período, ter algumas tretas com o pagode, porque a gente não entendia essa visão, a gente acreditava que as pessoas tinham de aceitar o rap de qualquer forma e tal. Mesmo as músicas as vezes não abordando temas sociais que as pessoas não gostavam de ouvir, a gente sempre teve esta resistência do sistema em si de aceitar nossa música. Hoje eu entendo que tá tudo muito mais fácil. As músicas, as letras já não são mais tão pesadas, hoje se fala muito de festa, de droga e outras coisas… hoje é tudo mais fácil. O próprio Haikaiss deu uma entrevista falando que, em comparação com os anos 90, hoje é mamão, entendeu? Eles falaram isso no último show que fizeram aqui em Campinas. No nosso tempo, pra você lotar um baile, você tinha que fazer uma mega divulgação; atualmente, você paga os canais que tem de Facebook e outras redes sociais e lota uma festa. Entã, hoje o rap é muito mais aceito, como eu posso dizer… as pessoas conseguem ver mais o rap até por terem mais pessoas brancas cantando também, o rap virou uma coisa popular e na nossa época não era. Eu entendo que ali, nós abrimos a estrada, que era de chão mesmo, asfaltamos e hoje tá todo mundo rodando tranquilo, de boa.
E – Uma grande curiosidade: como era produzir rap sem computadores e divulgar o trabalho sem a internet?
Doctor X – Era uma coisa assim, incrível. Impressionante o poder que a música tem, como as pessoas se dedicavam a ela. Da nossa época, tem muita gente que nem canta mais, muita gente desacreditou do rap, do seu próprio trabalho e tal… a gente usava tape de rolo pra gravar; você ia lá, o cara cortava o tape – pra quem não sabe o que era o tape de rolo, era como se fosse uma fita cassete gigante, que o cara ia lá, vinhetava ela, tinha que estar certinho o corte ali, você cantava, gravava aquilo tudo… só os estudios mais importantes que tinham computador, era muito difícil você ver computador, e a gente dependia exclusivamente das gravadoras. Hoje em dia o artista percebeu que as gravadoras levavam aí 80%, 90% do que o artista fazia e o artista ganhava apenas 10% disso e com o surgimento da internet as gravdoras deixaram de existir, cara. O artista hoje grava um EP dele e ele vende as músicas dele na rede, não depende mais da gravadora. O jabá, que era aquele pagamento para tocarem suas músicas nas rádios, que antigamente as próprias gravadoras pagavam, também acabou. Quando o artista se tornava popular, havia a questão das coletâneas. No caso da 105 Fm, onde a gente tocou muito, “Verão na V.R.” se popularizou pelo programa Espaço Rap, que fazia coletâneas em cd; essa nossa música saiu no Espaço Rap volume 1, primeira música do cd, e este cd é lembrado até hoje por causa dessa músca. Nós só conseguimos sobreviver porque a música era boa e foi um tempo mágico, pois muitos grupos, por falta da internet e dos computadores, já não existem mais, acabaram ficando pra trás.
E – Antes, a gente conversou um pouco sobre como era ser rapper e como era a imagem do rap lá atrás, quando vocês começaram. Hoje os rappers brasileiros tem espaço na mídia, fazem shows em lugares badalados e o rap é um gênero que transcendeu a periferia. Há muitas críticas de que isso só teria acontecido porque o rap já não é tão carregado de reflexões sociais como antes e porque o rap teria embranquecido. Na visão de você, foi isso mesmo que ocorreu ou você vê o estágio atual do estilo musical como consequência de outros fatores?
Doctor X – Eu acho que tem um pouco a ver com tudo aí na sua pergunta, cara. Eu acho que o rap embranqueceu sim, é natural, né? Da mesma forma que nós, negros, sempre lutamos pelo nosso espaço, eles também lutaram pelo deles e uma hora isso iria acontecer. Brancos também começaram a fazer rap, viram que poderiam fazer também e a gente tem uma certa culpa nisto. O negro ficou confortável. É a mesma coisa que o melhor jogador do mundo achar que nunca vai nascer ninguém melhor que ele. A gente sabe que as coisas acontecem e ninguém é insubistituível. O que aconteceu com o rap foi isso… acho que os próprios negros acabaram relaxando, deixando as coisas acontecerem, achando que só eles eram donos do rap e não é – o rap não tem dono, o rap é daquele que souber fazer bem feito, né? O rap tá aí pra todo mundo e usufruir dele não é crime. Hoje eu tenho uma outra visão de tudo que aconteceu e a gente hoje tá sendo ajudado por um grupo novo, a rapaziada do Haikaiss, que viu na gente essa possibilidade de agregar , não só pro grupo deles, mas também pro público deles, e fazer com que eles também sejam conhecidos do nosso público, pois nós temos uma grande representatividade dentro do rap, e eles também, de certa forma, procuraram padrinhos. Não que eles precisem disto – eles já tem espaço na mídia suficiente e um público grande e fiel, tudo que eles fazem é sucesso, lançam uma música hoje e amanhã, como eu já vi, o pessoal já sabe a letra, já está cantando… é um processo natural. Uma hora ou outra ia surgir isso e o rap hoje é predominado pelos brancos… estamos em 2017, nós começamos em 1988 e só de uns 5 anos pra cá que eu vejo que isso está acontecendo. Eles conquistaram este espaço porque são competentes no que fazem, isso é inquestionável.
E – Estamos vivendo um momento complicado. Trump no poder e movimentos supremacistas mais ativos do que nunca nos EUA, extrema direita indo longe em vários pleitos eleitorais pela Europa, perda de direitos sociais no Brasil… O racismo, o preconceito são temas recorrentes nas letras do SN. Como avalia o cenário hoje? Acha que as coisas mudaram desde que vocês começaram a compor?
Doctor X – Não vou dizer que mudaram. A gente conquistou muita coisa, o rap conquistou muita coisa, mas existem alguns pontos que não dependem somente do rap e ficaram cada vez mais difíceis. O gênero acobou sendo tolerado, né? Muitas vezes nós não somos aceitos, as pessoas toleram o que a gente faz e eu entendo que o rap também perdeu um pouco de força, até pelo contexto das letras – hoje em dia não é um conteudo tão social mais, ele passou a ser mais pop. Grupos que batem de frente, que carregam esta bandeira, como o Racionais Mcs, o Consciência Humana, eles tem alguns meios específicos em que são mais divulgados e ainda carecem de um pouco mais de espaço na grande mídia. Quanto a governo, acho que a tendência é que as coisas piorem cada vez mais. As pessoas apenas estão mostrando como as coisas realmente são, como elas pensam, e eu acho que cabe a nós do rap, que ainda estamos com o microfone na mão e temos o poder de alcançar várias pessoas, nós temos que procurar abrir os olhos do pessoal e mostrar que nós podemos mudar as coisas, que não sejamos tão obedientes a governos, que fiquemos mais atentos na hora de votar, porque nós estamos sendo manipulados por este governo que nós temos aí. Não é de hoje que os governos roubam, que os políticos roubam, só que tá tudo tão escancarado que a gente finge que não quer enxergar. Nós precisamos mudar essa realidade. O que cabe ao rap é poder assumir o seu papel e voltar a ter um pouco desta “visão”. A vida não é só festa, a vida não é só droga, a vida não é só bebida. Nós temos uma grande responsabilidade através da música de atingir pessoas, de mostra a elas que elas são capazes, que elas podem mudar. Por que eu vou ficar numa favela se eu posso ter algo melhor? Por que eu vou aceitar tudo que o sistema sempre me propos se eu posso ser melhor que isso? O rap tem que assumir de novo essa responsabilidade que se perdeu um pouco, eu acho, com o tempo.
E – Musicalmente, qual foram as grandes influências do grupo?
Doctor X – A gente foi privilegiado. O grupo todo sempre teve os mesmos gostos. Nós somos da escola do NWA, é um grupo que nos influenciou muito, as questões abordadas por eles, do negro em uma época que era difícil, pois as pessoas queriam embranquecer as coisas e eles provaram, as vezes até com a idéia de se impor através das armas, com letras fortes e conteúdo que batia de frente com a polícia, eles nos incentivaram, não diria a sermos rebeldes, mas a termos essa visão, de quebrarmos um pouco desse medo que a gente tinha como massa, de enfrentar as coisas. A gente vem dos anos 90, uma época rica. Boogie Down Productions, Ice-T, Public Enemy que, poxa, enchiam a gente de esperança, que nos ensinava como nós deveríamos agir, a encarar as coisas de frente. Acho que a questão musical do Sistema Negro veio disso e até hoje mantemos estas influências. Eu também admiro muito o Dr. Dre, um rapper que saiu do gueto e se tornou o primeiro rapper bilionário, com a venda da Beats e tal… e nos influenciou e nos influencia até hoje. O cara tem 60 anos, é bilionário, saiu do gueto e hoje é um produtor que lançou outras pessoas que também fizeram muito sucesso, como o Kendrick Lamar, 50 Cent, teve sua própria gravadora… Nós viemos desta época e eu não sei se as pessoas, não as que consomem o rap, mas aqueles que escrevem, talvez não tenham ídolos como nós, que vivemos essa época, porque nós não ouvimos falar desses caras, nós vimos eles gravarem, cantando, produzindo. Isso também foi um diferencial pra gente.
E – Da geração atual, o que tem tocado no seu rádio, Doctor X?
Doctor X – Ultimamente eu tenho escutado bastante PnB Rock, que é um cara bacana, Kendrick Lamar, que dispensa apresentações… mais esses dois caras mesmo. Cada dia surge um grupo novo, né? Tem Migos, Ty Dolla Sign, Wiz Khalifa, eu ainda ouço muito Snoop Dogg, que eu acho que é um cara formador de opinião, um cara maravilhoso; ele já provou que você não tem que ficar ali no seu quadradinho, ele já falou que não sabe mais o que ele faz porque tudo que ele se propõe a fazer é sucesso, ele canta reggae, ele faz dance, ele faz no sei o que… só que lá nos Estados Unidos, porque se você for fazer aqui no Brasil, você é vendido, você perdeu sua essência, você não sabe mais o que você faz… Acho que essas são as pessoas que eu ouço hoje.
E – Se encontrasse alguma pessoa que não soubesse nada de rap, quais álbuns, nacionais e internacionais, indicaria como essenciais para que ela conhecesse e entendesse o que é o rap?
Doctor X – Nacionais: Sistema Negro “Ponto de Vista”, indicaria pra ela este disco maravilhoso que nós fizemos, que foi nosso primeiro disco com letras, como se fosse capa dupla, mas só tinha o álbum com o disco dentro. Foi o nosso primeiro disco após nós termos saído na coletânea “Voz de rua”, que abriu as portas pra gente nacionalmente, a partir dali nós ficamos conhecidos e gravamos pela M.A. Eu daria este disco pra ela, Sistema Negro, 1992. E também daria todos os albuns dos Racionais Mcs. É a banda mais antiga, com mais seguidores e que mais influencia o público em geral. Americanos: todos do NWA, Public Enemy e Boogie Down Productions.
E – Para finalizar: já faz um tempo que estão trabalhando em um álbum comemorativo aos 25 anos de carreira do grupo. Ao pessoal que acompanha o Sistema Negro, o que pode contar sobre esse novo trabalho?
Doctor X – É um trabalho árduo. Já estamos há alguns anos tabalhando nele. Eu achei que nós iríamos lançar este álbum antes, mas eu entendo que tudo tenha uma razão: com a demora para terminar o cd, nós acabamos firmando uma parceria com o Haikaiss, na pessoa do Spinardi, e ele tem nos ajudado bastante. Ele é responsável por toda mixagem e masterização do cd, que hoje em dia é a alma de um álbum, tanto pra você colocar um trabalho de qualidade na rua, quanto pra você brigar, de igual pra igual com as pessoas. E outra: por ser um disco de 25 anos, o público espera da gente o melhor. Agora, eu sei que, como as coisas mudaram, a gente não está mais em 1990, muita gente talvez não vá entender a proposta do cd do Sistema Negro, pelos timbres musicais, pelas letras, mas isso aconteceu também com o Racionais, com o último album dos Racionais… as pessoas esperavam um Racionais de 1990, só que a gente não tá mais naquela época. Agora a gente tá vivendo uma época de trap, de outras influências musicais, que a gente precisa estar atento, antenados, para que as pessoas ouçam e você consiga prender o cara. Antigamente, você fazia uma música, uma história de 10 minutos, tipo “Um homem na estrada”, entendeu? As músicas prendiam o cara ali e ele ficava 10 minutos escutando. Hoje o público não quer mais isso. Um cara quer um álbum de 40 minutos, contendo 15 músicas. É o Sistema Negro! Só que um Sistema Negro 25 anos depois, com todo mundo já pai, alguns avôs, é um disco maduro, seguramente o último disco do grupo, porque depois de 30 anos muitas coisas mudaram, a nossa mente mudou, a nossa cabeça é outra, não sei se, individualmente, a gente faça algumas coisas, mas, como grupo, é um disco que tem tudo pra dar certo. Agora, a gente espera que as pessoas recebam este disco bem e entendam as músicas. O álbum terá 14 faixas, com participação do Haikaiss, Costa Gold e Nocivo Shomon, representando a nova escola; da velha escola, participaram o Sandrão, do RZO, MV Bill, Rapin Hood, Paulo Brown, fazendo uma narração e, fechando o álbum, o dj Erick Jay. Tem muita gente que já tá questionando “poxa, mas o Sistema Negro se vendeu”, “Sistema Negro fechando parceria com esses caras, fechando parceria com branco”… a gente precisa entender que o momento é esse. Vejam o que o Snoop Dogg fez com o Charlie Wilson, do The Gap Band; ele foi lá, buscou o Charlie Wilson, trouxe o Charlie Wilson para fazer vários discos com ele – o Doggfather é um deles – e a partir dali ele trouxe o Charlie Wilson de novo pra cena.
E quem é Snoop Dogg perto do The Gap Band? Foi uma das maiores bandas que existiram nos anos 70 e 80! E estavam lá esquecidos. O Haikaiss fez esse mesmo esquema com o Sistema Negro; não que eles tenham tirado a gente do fundo do poço, mas a gente andava esquecido pela mídia. Nós agradecemos a eles e a tantos outros grupos que estão nos ajudando a voltar. Tenho certeza que este será um disco que talvez muita gente não entenda no momento, mas daqui a 2, 3, 5 anos vão entender e vão falar “poxa, esses caras foram diferentes, são diferentes e por isso eles ficaram na história do rap nacional”.
Agradecemos ao Guilherme Freitas pelas contribuições feitas à esta entrevista.
*Felipe Honorato é graduado em políticas públicas e mestrando em estudos culturais pela USP, e especialista em gestão de políticas públicas de gênero e raça pela UnB; Luan Henrique Ferreira é fotógrafo e designer gráfico. Ambos colaboraram com o Pragmatismo Político.