Redação Pragmatismo
Direitos Humanos 28/Jul/2011 às 17:49 COMENTÁRIOS
Direitos Humanos

Onde homens valem menos que bois: entrevista com um escravo

Publicado em 28 Jul, 2011 às 17h49
fazenda escravos homens valem menos boi

Marabá, sexta-feira.

O sol da manhã confirma a época da seca e anuncia o calor que virá durante a tarde. Atrás do muro alto em uma rua de terra à margem de um córrego, fica o abrigo da Comissão Pastoral da Terra chamado “cabanagem”. Trata-se de um espaço feito para receber trabalhadores em situação de risco. O nome faz referência à revolta de negros e índios ocorrida na Amazônia no período regencial.

João me aguarda para a conversa. Ele saiu do Maranhão em novembro para procurar emprego no Pará. Deixou para trás a mulher e um casal de filhos. Acabou aliciado por um “gato”. Trabalhou seis meses praticamente sem receber, por causa da dívida na cantina. Um dia sofreu um acidente. Pediu as contas, a dona da fazenda, de nome Clara, disse que não tinha o que lhe pagar. Ele ameaçou ir à Justiça. Ela retrucou: “Rapaz, se tu quiser ir, tu pode ir. Porque na minha fazenda quem manda é eu, não é a polícia”. Fugiu com 200 reais no bolso.

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Pergunto qual era o trabalho dele na fazenda.

“Era cortando juquira (erva daninha que atrapalha o pasto) e ajudante de fazer cerca na fazenda.”

Fazia isso no Maranhão?

“Não, vim fazer aqui.”

O que é a cantina?
“É onde vende bota, foice, arroz, feijão, óleo, essas coisas assim de fazenda, sabe? Café, açúcar, sabão.”

Eles cobravam?

“Cobravam. Olha, lá no barraco que eu tava, nem energia não tem. O litro de óleo que a gente compra lá, tudo vai pra nota, pro caderno. A água lá onde os meninos estão é água de rio. E lá onde eu tava é um córrego, desse córrego ela botou um cano e encostou uma mangueira da grossura de um dedo nesse cano para puxar água pro pneu. Nesse pneu, o gado bebe, a gente toma banho, bebe e também tira para fazer comida.”

Quantas pessoas estão trabalhando?

“Nós tem cinco pessoas lá cortando juquira, tem dois vaqueiros e o rapaz encarregado do serviço.”

O que a fazenda produz?

“Só gado mesmo. É uma fazenda de gado.”

É grande?

“É. Praticamente só de juquira que ela queria fazer esse ano é 100 alqueires.”

O que ela tinha prometido pagar?

“Ela pagava 25 reais a diária. E pra mim, nesses oito meses, ela me pagou 500 reais: 300 pelo trabalho e 200 pela indenização da minha mão, para eu poder ir embora. Foi a primeira vez que eu vim fazer a denúncia aqui. Porque isso não é correto. Eu vim do Maranhão para trabalhar, sem carteira assinada, trabalho seis meses, o cara me aleija, por culpa dela, aí ela não me paga direito, e ainda fala que é muito caro. Ela falou pra mim que eu tô caro pra ela, ó.”

Como saiu da fazenda?

“Saí escondido.”

Como?

“Eu só falei pro seu Ronaldo (o aliciador): ó seu Ronaldo, eu vou denunciar a fazenda, porque a gente não tá recebendo nada. Ele não queria que eu viesse porque ele ficou com medo de pegar para ele, porque ele que tava devendo. Eu expliquei: olha, senhor, eu não tô indo denunciar você, eu tô indo denunciar a fazenda. Porque é a fazenda que tá devendo nós todos.”

Ele ficou com medo de quê?

“Ele ficou com medo, assim, porque ele não tinha costume. Como eu também não tenho. Mas eu sei que é errado e eu vim procurar o direito.”

Como era a cantina?

“A cantina é dentro da sede mesmo. Um dia morreu uma vaca, às 8 horas da manhã, engatada no arame. Quando o vaqueiro achou, era 6 horas da tarde, e urubu já tinha furado a vaca. Aí ela (a dona da fazenda) mandou limpar e vender a carne toda para os que pegaram serviço. A vaca tava empazinada já. Uns 15 ou 20 dias, foram pegar um gado, e aí quebrou um boi. Quebrou um boi e passaram três dias lá dentro do pasto com o boi quebrado. Com três dias o boi morreu. Ela fez o mesmo, mandou limpar e vender de novo.”

Ela vendeu por quanto?

“Cinco reais o quilo.”

Como se paga?

“Na conta. Trabalhou um rapaz lá, que ele pegou um quarto de um boi, e não teve com o que pagar. Pois ela botou na conta do seu Ronaldo para ele pagar. Sendo que não tinha nada a ver, e ela passou para ele pagar.”

Vocês pagavam?

“Não, a gente não pagava. A gente só trabalha mesmo para comer. Lá -realmente é uma escravidão muito séria, igual aquelas das antigas. Sabe como é? A gente trabalha para pagar o que come lá.”

Você não conseguia juntar dinheiro?

“Não, nunca consegui nada. Tá fazendo cinco meses que eu não boto nenhum centavo para a minha família. Seis meses que eu trabalhei e dois meses que eu fiquei parado sem poder trabalhar, até agora. Para você ver, a diferença desse braço aqui, que ele tá secando, comparando com esse aqui.”

O que aconteceu?

“É por causa do indivíduo que torou o tendão e os ossos aqui. Eu não tenho esse nervo aqui não. Foi o rapaz que torou, por causa da minha foice. Quando eu cheguei pro serviço, disse: ‘Seu Zé, me dá a minha foice, que tu pegou’. Ele disse: ‘Não, essa foice é minha. Rapaz, essa é minha, tu não conhece o que é teu?’ Aí ele, louco, né, fez ar de rir e disse: ‘Então pega a tua foice’. Na hora que eu levei a mão para pegar a foice, ele levou a foice de força assim. Até acredito que ele botou para torar foi o meu braço. Mas eu puxei, pegou esses três dedos aqui, mas só aleijou esses dois. Esses dois dedos aqui praticamente estão mortos, não tem como movimentar eles.”

A foice era de alguém ou da fazenda?

“Era minha, porque a fazenda não dá nada. Tudo é a gente que compra.”

Quanto pagou?

“Quinze reais.”

O saldo seria como?

“A gente trabalha numa diária, descontando 15, ai fica 10, né, porque é 25 a diária. Mas aí ficou por isso mesmo, porque nunca peguei dinheiro.”

E o resto dos 10 ia pra você ou tinha de pagar alguma coisa a mais?

“Qualquer coisa que pegava era descontado na diária, o gato acertava se a gente tivesse saldo. Como a gente nunca teve, ficou assim mesmo.”

E depois?

“Fui ao hospital. A dona da fazenda disse que pagava o que tinha de ser pagado. E se os dedos não voltassem ao normal, ela pagava os dedos. Mas ela não pagou nem os dias que eu tinha trabalho nem os que eu fiquei parado. A indenização dos dedos foi 200 reais. E ainda falou que era muito, que tava caro pra ela.”

Felipe Milanez, CartaCapital

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