"A classe média não terá nem plano de saúde nem SUS"
Mudança na regra dos planos de saúde vai fazer o Brasil voltar para 1998, alerta especialista. Comissão da Câmara dos Deputados deve votar nesta quarta-feira projeto de lei que cria barreiras para usuários e favorece empresas
Mais garantias para empresas e burocracias a mais para usuários. Esse é o espírito geral da proposta em discussão na Câmara dos Deputados que muda as regras para os planos de saúde, na avaliação da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).
O substitutivo do relator, deputado Rogério Marinho (PSDB-RN) ao PL 7419/2006, estava previsto para ser votado nesta quarta-feira (8) em uma comissão especial sobre o tema, mas a decisão foi adiada para 29 de novembro.
Como tramita em regime de urgência, o texto não poderá ter pedido de vista, ou seja, para adiar a votação no colegiado. Se for aprovado, segue para o plenário da Casa, onde é uma das prioridades do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
Para José Sestelo, vice-presidente da Abrasco, a proposta que atende a interesses empresariais e dificulta o atendimento aos usuários junto com o teto de gastos públicos, que limita recursos para o SUS (Sistema Único de Saúde), pode levar a uma grave crise no País.
De acordo com a proposta, juízes terão de consultar um profissional da saúde antes de obrigar a operadora a prestar o atendimento que havia negado ao beneficiário, com exceção de casos emergenciais. Quanto a próteses, órteses e equipamentos especiais, a operadora indicará três modelos. Hoje é definido direto pelo médico.
Outra alteração determinante para usuários na a última faixa etária, de 59 anos ou mais, é que o reajuste será dividido em cinco parcelas, pagas quando o beneficiário completar 59, 64, 69, 74 e 79 anos de idade. A lei atual proíbe aumento a partir dos 60 anos.
Na avaliação da Abrasco, as mudanças aumentam a burocracia e podem prejudicar o atendimento. A proposta também é criticada pelo Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor). A estimativa é que há no Brasil 47,6 milhões de consumidores de planos de assistência médico-hospitalar individuais, familiares e coletivos.
O lado das operadoras
Para as empresas, as principais mudanças são multas mais brandas e redução das garantias patrimoniais exigidas. As multas passarão a ser proporcionais à infração cometida e limitadas a dez vezes o valor do procedimento questionado. Hoje o valor varia de R$ 5 mil a R$ 1 milhão. Em 2016, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) aplicou R$ 1,27 bilhão em multas às operadoras.
O faturamento das operadoras de planos de saúde aumentou 12,8%, para R$ 158,3 bilhões, em 2016. Os custos, por sua vez, cresceram 14,4% para R$ 125,5 bilhões, segundo dados da ANS. O setor encerrou o ano passado com lucro de R$ 6,2 bilhões, o que representa um crescimento de 70,6% quando comparado a 2015.
O parecer reúne o conteúdo de 150 propostas em tramitação na Câmara. De acordo com Sestelo, em geral, o objetivo dos projetos de lei era ampliar os direitos dos consumidores. Já o parecer de Marinho é no sentido oposto. O tucano também foi relator da reforma trabalhista, que contemplou demandas empresariais.
A discussão acontece em paralelo às declarações do ministro da Saúde, Ricardo Barros, de defesa da redução do SUS e a favor dos chamados planos de saúde populares. Deputado federal licenciado do PP, ele teve como principal doador da campanha Elon Gomes de Almeida, sócio do Grupo Aliança, administradora de benefícios de saúde, que disponibilizou R$ 100 mil para o então candidato. Além disso, o presidente da comissão, deputado Hiran Gonçalves é do mesmo partido e estado (Paraná) do ministro.
Confira os principais trechos da entrevista de José Sestelo.
Se for aprovada, quais serão os principais impactos da proposta que muda regras de planos de saúde?
José Sestelo: Quando o ministro [da Saúde] Ricardo Barros assumiu, ele criou um grupo de trabalho no Ministério da Saúde para sugerir propostas de mudanças e implantação dos chamados planos populares. Esse grupo depois foi transferido para a ANS, a Agência Nacional de Saúde Suplementar. Fez audiências públicas e ao final criou um relatório.
Mas em paralelo a isso, na Câmara, houve uma iniciativa de criar uma comissão especial para rever a lei dos planos de saúde que seguiu seu trâmite em regime de urgência. Criticamos muito isso porque não entendemos o porquê da urgência. Ele apensou diversos projetos sobre planos de saúde. Esses projetos, em geral, eram iniciativas que visavam ampliar os direitos dos consumidores e não restringir.
Durante os trabalhos da comissão, o relator reuniu todos esses projetos e produziu um relatório francamente favorável aos interesses das empresas. Praticamente todos os projetos de lei em tramitação na Câmara deixaram de existir.
Essa discussão tem um impacto a longo prazo, já que, além da proposta atual restringir direitos do usuário, acaba com projetos no sentido contrário?
Exatamente. É uma estratégia política que limpou a pauta da Câmara desses diversos projetos e produziu uma nova realidade que, na prática, é a revogação da Lei 9656, que regulamenta os planos de saúde. Vai voltar, praticamente, à situação antes de 1998, quando as empresas tinham uma liberdade muito maior de atuação e isso gerava problemas de reclamações, negação de cobertura. Foi um dos motivos, inclusive, que deu origem à criação da lei.
O relatório propõe que o reembolso das operadoras ao SUS seja direto para os municípios e estados em vez de para o Fundo Nacional de Saúde. Essa medida pode agilizar repasses para os entes que, em geral, têm menos recursos?
Nós temos hoje a chamada dupla porta. Tem hospitais ou instituições assistenciais que atendem simultaneamente o SUS, particulares e clientes de planos de saúde. Na prática, essas unidades acabam dando preferência a clientes de empresas e particulares, embora legalmente isso não seja permitido.
Com esse pagamento no balcão, ou seja, esse ressarcimento direto ao ente federativo local, seja município ou estado, o receio é isso que acabe induzindo, na rede assistencial, mais ainda do que existe, uma preferência por clientes das empresas e particulares. Isso iria restringir ainda mais a oferta de leitos para clientes do SUS.
Também pode dificultar a fiscalização…
Claro. Vai pulverizar. E não sabemos a situação. São cinco mil municípios. O objetivo do ressarcimento pelo fundo centralizado não é garantir dinheiro para financiar o SUS. É um mecanismos porque as empresas quando fazem um contrato com os clientes, elas cobram por essa assistência.
Digamos que você tenha um plano de saúde e sofra um acidente e vá para um hospital público, fica uma semana na UTI. Quem paga é o SUS, mas a empresa cobrou por isso no contrato. Não é o paciente que sai ganhando. É a empresa que sai ganhando porque ela cobra e quem paga é o orçamento público. O ressarcimento é apenas um mecanismo de correção dessa injustiça.
Uma demanda das empresas são o custo alto para mais velhos. Mas a Abrasco afirma que o parcelamento do reajuste para faixa etária de 59 anos viola o Estatuto do Idoso. De que forma? Qual será o impacto dessa medida?
O estatuto estabelece um limite que a partir de determinada idade os usuários de planos de saúde não pode sofrer reajuste porque do ponto de vista das empresas não tem interesse no paciente idoso. Tem interesse em quem vai usar pouco e tem capacidade contributiva, então fazem um cálculo atuarial. O valor da prestação é distribuído pelas diversas faixas etárias para cobrir os custos e ter lucro.
Essa mudança é só uma forma de assustar menos essa clientela mais idosa porque quando você faz 59 anos muda de patamar e o plano passa a custar muito mais caro. Eles vão continuar cobrando a mesma coisa, mas vão espalhar mais depois dos 60 anos.
O que nós gostaríamos é que houvesse mais transparência em relação aos custos porque é uma caixa preta. As empresas cobram o que querem e ninguém tem condições de dizer se estão cobrando muito ou pouco.
A maioria dos contratos são empresariais, então a ANS não regula esses reajustes. Quem determina é a própria empresa e ela quem recebe esse aumento. O que queremos é transparência porque se é um serviço de relevância pública, é preciso que essas informações sejam públicas.
O relatório traz algumas medidas que protegem as empresas, mas colocam barreiras a alguns serviços. Por exemplo, juízes terão de consultar um profissional de saúde antes de obrigar a operadora a prestar o atendimento que havia negado. No caso de próteses e órteses, a operadora irá indicar três modelos ao médico, que hoje escolhe o aparelho sozinho. Essas normas podem atrasar tratamentos?
Essa burocratização do acesso ao atendimento faz parte de ação rotineira das empresas de negação de cobertura. Estudo feito no Tribunal de Justiça em São Paulo mostra que a negação de cobertura e procedimentos cirúrgicos tem crescido.
Isso já foi incorporado como uma estratégia das empresas de economizar. Isso reduz despesas no curto prazo, ainda que seja questionável judicialmente. Tudo isso tem que ser entendido dentro dessa lógica.
As empresas estão tentando também criar câmaras técnicas nos tribunais para subsidiar decisões dos juízes, mas temos receio que essas câmara obedeçam à visão das empresas.
E a questão das órteses e próteses, a gente sabe que existe uma articulação entre fabricante, distribuidores, prestadores e intermediários, que são as empresas. Acho que o objetivo é chegar a um acordo que garanta as margens [de lucro] para todos dessa cadeia de valor e o cliente, obviamente, ficaria prejudicado.
As alterações como multas mais brandas e a redução das garantias patrimoniais exigidas das empresas do setor tem como objetivo uma ajuda financeira às operadoras?
Isso está ligado a um fenômeno estrutural chamado financeirização que está tomando conta da economia como um todo e dessas empresas de planos de saúde em particular. A rigor são empresas não financeiras. Não são bancos nem seguradoras. Entretanto, elas têm apresentado nos últimos anos um aumento do lucro financeiro. Elas têm o lucro operacional, baseado na atividade administrativa de intermediação da assistência, e por cima disso têm o lucro financeiro cada vez maior.
Até então empresas não podiam usar imóveis como ativos garantidores porque não têm liquidez. Não podem ser vendidos rapidamente. Então se a empresa falir, a ideia da ANS até agora é que ela precisa ter ativos líquidos, disponíveis de forma imediata, para que o interventor possa pagar as dívidas com os fornecedores e com os clientes.
Quando diminuem as garantias, o patrimônio das empresas vai estar disponível para fazer mais aplicações financeiras de risco e isso reduz a segurança. Em caso de falência, não haverá meios imediatos para pagar os credores. Ou seja, é um risco sistêmico que está sendo colocado.
A escolha do relator, ligado ao setor empresarial e relator também da reforma trabalhista, também é um indicativo da intenção da proposta?
O relator, do ponto de vista ideológico, é completamente alinhado com a visão das empresas. Como também o próprio governo e o próprio ministro.
O ministro Ricardo Barros defende que se houver mais usuários de planos de saúde mais básicos, o SUS será desafogado e concentrará a oferta em tratamentos mais complexos…
É uma afirmação completamente falaciosa e eu gostaria que ele apresentasse os fundamentos. Esse argumento foi apresentado pela primeira vez em 1972, num congresso da Abramge [Associação Brasileira de Planos de Saúde], como forma de legitimar as empresas. Naquele momento, elas não tinham a legitimidade institucional que têm hoje. Estavam querendo se apresentar como algo de relevância pública, de interesse público e apresentaram esse argumento quando nem havia o SUS.
Desde então, esse argumento tem sido repetido de forma acrítica e agora mais uma vez, o atual governo e mesmo alguns sanitaristas, repetem isso sem se dar conta de que ele não faz o menor sentido. De 1972 para cá só aumentou o número de pessoas que têm plano de saúde e isso melhorou a assistência pública em que? O que a gente tem visto é justamente o contrário.
Você tem uma quantidade de recursos que ficam imobilizados. Quem tem plano de saúde tem acesso a quatro vezes mais recursos assistenciais, em média, do que quem não tem. E isso é uma parcela de 25% da população. Um quarto da população tem acesso privativo a quatro vezes mais recursos do que o conjunto da população porque quem tem plano de saúde continua podendo usar o SUS, mas o contrário não é verdade.
De modo geral então o projeto em discussão na Câmara contempla os interesses das empresas, mas deixa de lado o interesse público do serviço dos planos de saúde?
As alterações que estão sendo feitas na lei são amplamente favoráveis aos interesses das empresas e o interesse público que a gente entende é dos clientes. As pessoas vão ter mais dificuldade. Olha só o que está acontecendo: as pessoas idosas são expulsas dos planos de saúde por barreiras pecuniárias. O plano fica tão caro que não conseguem pagar. Quando têm filho ou alguém da família que podem ajudar, elas têm sorte e a família vai montar um esquema para viabilizar.
Mas quem não tem vai recorrer ao sistema público e o SUS com esse congelamento por 20 anos do orçamento, a tendência é sucatear com o passar dos anos. A classe média não terá nem plano de saúde nem SUS. Isso porque o plano de saúde bom vai ser caro, difícil de pagar, o plano barato vai ser insuficiente e o sistema público estará sucateado. Então no médio e, talvez no curto prazo, teremos uma crise sanitária, uma crise assistencial de proporções gigantescas. Esse é o nosso receio.
Se o projeto de lei for aprovado, a Abrasco irá entrar com alguma ação judicial?
Estamos na expectativa na Câmara. Ainda esperamos que os deputados rejeitem. Estamos nos mobilizando para isso, politicamente. Mas não sabemos o que vai acontecer. Se a passar a mudança na lei, vamos avaliar qual seria a medida mais adequada para tomar.
Marcella Fernandes, HuffPost