Sobre a distopia nossa de cada dia
Numa sociedade melancólica de corações partidos e ilusões perdidas, precisamos reaprender a imaginar um futuro onde se possa viver e onde se queira viver. A pergunta que paira no ar é: isso ainda é uma possibilidade?
João Miranda*, Pragmatismo Político
A nossa época tem sido atravessada por muitos acontecimentos, às vezes de grandes tragédias. Não raro o adjetivo de “histórico” é reivindicado antes de o dia acabar. Num mundo globalizado, a aceleração do processo histórico também é globalizada. Do país das calças bege aos Emirados Árabes Unidos, da terra do Tio Sam à terra do sol nascente, tudo parece acontecer mais rápido.
Se non è vero, è vem trovato que nunca a humanidade viveu transformações tão radicais, tão rápidas e tão complexas como as que vivemos na atualidade. Radicais transformações nas percepções do tempo impactam hoje a nossa vida em todos os sentidos e faz com que sejamos capaz de olhar para uma década atrás e conceber esse pouco tempo quase como um passado remoto.
A historiografia, especialmente a que parte de uma perspectiva teórica de cunho marxista, propõe a tese de que esse processo de aceleramento das transformações do processo sócio histórico inicia-se com a Primeira Revolução Industrial e a Revolução Francesa. Tem início nesse período e se intensifica no XIX, ao ponto de o XX ser compreendido por Hobsbawm como a ‘Era dos extremos’. Foi um processo de mudança não só na velocidade com que as coisas se transformam, mas também nas percepções do tempo e da história. Antes dessas duas revoluções, não se acreditava numa ruptura com o passado. Isto é, as pessoas acreditavam que suas vidas seriam basicamente semelhantes às dos seus antepassados. As revoluções inseriram o coeficiente de mudança na consciência histórica delas.
Paulatinamente, o tempo deixa de ser concebido como estático e o horizonte passa a apontar para um futuro aberto de múltiplas oportunidades. Sapere aude!, brandava Kant em seu manifesto. Ouse saber! Faça história! Tenha coragem de usar o seu próprio entendimento. No umbral da modernidade, atingir a autonomia intelectual era condição sine qua non da possibilidade do indivíduo emancipar-se. Os indivíduos, especialmente os ocidentais, percebiam-se no direito de escolher seu rumo e sentiam estar caminhando para um mundo melhor (a noção de progresso). Para essa concepção de tempo histórico, preponderante no século XIX, o passado está sendo cada vez mais deixado para trás pela locomotiva da história e o presente é considerado um estado de transição para um futuro repleto de possibilidades.
Ainda permanece conosco a percepção de uma aceleração das mudanças, mas, diante da deterioração da vida que sentimos objetiva e subjetivamente no nosso cotidiano e a expectativa ameaçadora de um aquecimento global, será que ainda acreditamos que o mundo está progredindo para um lugar melhor? Será que ainda acreditamos que podemos fazer história? O futuro ainda é compreendido como uma janela aberta de possibilidades?
A concepção social de tempo dominante na contemporaneidade é outra. O futuro não parece mais aberto de possibilidades. Concebe-se que a janela está fechada por ameaças, ou, no mínimo, significantemente reduzida. O presente deixou de ser somente um espaço temporal de transição e se torna amplo, repleto de simultaneidades, no qual o indivíduo sente que o seu papel de transformação perde força. O passado não fica mais para trás. Ele é concebido como algo que não passa e que constantemente inunda o presente.
Portanto, o indivíduo contemporâneo, não só o brasileiro, carrega nos ombros o peso da projeção de um futuro distópico. O que será de fato ninguém pode dizer que sabe. Vive, assim, em total dúvida sobre o amanhã. As séries, produção cultural com maior poder disseminação na atualidade, representam bem essa distopia: são cada vez mais sombrias, quando não apocalípticas, como se vê em “The Walking Dead (AMC)”.
Arrisco dizer que essa distopia tem origem na sensação de se estar de mãos atadas – que, aparentemente, permeia em demasia a sociedade atual. Há muitos outros fatores que levam ao fatalismo. A crescente ideia de que o nosso poder de ação no mundo é ínfimo pode ser um deles. Ou seja, frequentemente o sujeito teme o que virá e no fundo acha que pouco, ou até mesmo nada, pode ser feito para que seja diferente. “O inverno está chegando”, frase da série de “Game of Trones (HBO)”, expressa bem isso.
Uma sociedade despida da crença do seu próprio poder de transformação é uma sociedade melancólica. Para Freud (1917/2006), a melancolia seria um distúrbio na autoestima relacionado a perda de um objeto, sendo que tanto “perda” quanto “objeto” devem ser compreendidos em um sentido amplo. Diferentemente de um estado de luto, quando ocorre o processo normal de retirada da libido do objeto perdido e a seguir seu deslocamento para outro objeto, os melancólicos identificam-se com o objeto que tinha sido perdido e desloca para si próprio críticas que deveriam ser dirigidas ao objeto. Ao mesmo tempo que ocorre essa depreciação do eu, há um processo de supervalorização e idealização do objeto perdido.
Esse estado de melancolia que aparentemente percorre a sociedade é preocupante, porque os indivíduos, mergulhados nesse distúrbio, não se veem na capacidade de transformar a realidade. Depreciam o eu não se percebendo como sujeitos históricos capazes de transformar e, concomitantemente, agigantam o objeto a ser transformado. A incapacidade de ser afetado de outras maneiras, consequentemente, impede-o de vislumbrar um futuro que não seja Black Mirror (Netflix).
Perceba que o modo como o futuro é projetado incide no que acontecerá no presente, porque o que o sujeito sente por tudo o que viveu condiciona o que ele fará no agora, assim como a forma como ele se relaciona com tudo o que ainda não viveu. Diante da aceleração dos acontecimentos e da paralisia originada numa ideia prévia de dúvida em relação ao amanhã, que é entendido como imutável, não raro a sensação que paira no ar é de se estar num trem-bala em alta velocidade vendo a vida passar pela janela numa sucessão de cores e formas, sem saber para aonde se está indo e sem se sentir capaz (melancolia) de mudar a própria situação. Ou seja, o indivíduo na atualidade depara-se com um mundo inteiro por fazer e acredita que, depois de muito trabalho, ainda muito estará por fazer. Imobilizado pela idealização do objeto a ser transformado, restringe-se a autodepreciação.
No entanto, o amanhã não pode ser apenas inverno. Numa sociedade melancólica de corações partidos e ilusões perdidas, precisamos reaprender a imaginar um futuro onde se possa viver e onde se queira viver. A pergunta que paira no ar é: isso ainda é uma possibilidade?
*João Miranda é acadêmico de História na Universidade Estadual de Ponta Grossa, foi colunista do Jornal da Manhã e colaborou para Pragmatismo Político.
Referências
Freud, S. (2006). Luto e melancolia. In: S. Freud, Escritos sobre a psicologia do inconsciente. (L. Hans, trad., Vol. II: 1995-1920, pp. 99-122). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1917)