A dura vida da esquerda num Brasil cada vez mais anticomunista
João Elter Borges Miranda*, Pragmatismo Político
Ao longo da segunda metade do século XIX e, principalmente, durante boa parte do XX, permeou pelo planeta o medo ao comunismo. Com mais intensidade no Ocidente, ao longo de décadas o conjunto de ideias, correntes e tendências que identificam os comunistas como a encarnação do mal condicionou a opinião pública a crer que é preciso combatê-los. O anticomunismo chega ao seu ápice na chamada Guerra Fria, período de disputas estratégicas e conflitos indiretos entre os Estados Unidos e a União Soviética.
Nos Estados Unidos o anticomunismo intensifica-se a partir de 1945, quando morre o então presidente Franklin Delano Roosevelt e assume o seu vice, Harry Truman. Seu governo foi permeado por intensas manifestações anticomunistas e, assim, ele difundiu no país e fora uma “caça às bruxas”, como ficou conhecido o movimento de caça à comunistas, tendo à frente o senador estadunidense Joseph McCarthy.
No Brasil não foi diferente, evidentemente. Orquestrados por grupos conservadores e em certos momentos até por alas progressistas, marcou a nossa história a negação radical dos princípios e ideais comunistas e a oposição ferrenha a todo governo ou organização que dê suporte prático ou teórico a essa ideologia. É sem dúvida um dos fenômenos políticos mais relevantes nas duas fases de colapso institucional da democracia no Brasil, são elas: a ascensão do Estado Novo em 1937 e o Golpe civil-militar de 1964.
O anticomunismo só perde espaço aqui e no restante do planeta após a queda do muro de Berlim em 1989, quando grupos políticos e empresariais de diversos países, principalmente dos mais ricos, estando os Estados Unidos novamente encabeçando a empresa, conseguiram fazer com que o medo das drogas – e, posteriormente, do terrorismo – substituísse gradativamente o comunismo como figura ideológica de ameaça à “democracia mundial”.
Entretanto, ainda que o inimigo comum tenha sido trocado, um fenômeno tão antigo como o anticomunismo deixa raízes profundas. Continua se perpetuando no mundo em que vivemos, ressignificando-se e se incrustando com novas roupagens em posicionamentos político-ideológico diversos, como uma doença silenciosa que ocasionalmente reacende num novo sintoma e nos deixa de cama.
No terceiro colapso institucional que a democracia brasileira está sofrendo e que tem como ápice o Golpe de 2016, fica claro que o anticomunismo é um passado que não passou. E demonstra estar ressurgindo cada vez com maior intensidade. Um exemplo recente que viralizou nas redes sociais e jornais foi a ocupação do Plenário da Câmara dos Deputados, ocorrida em novembro de 2016. Afirmando protestar contra o governo “comunista” de Michel Temer e a corrupção na política, cerca de 50 a 60 pessoas tomaram o entorno da mesa de onde os membros da Mesa Diretora comandam os trabalhos. O grupo de manifestantes queria a participação do povo na política brasileira e, ainda, a intervenção militar. Houve empurra-empurra, uma porta de vidro foi quebrada e uma mulher se machucou. Ao final, segundo a Agência Câmara, cinco manifestantes foram detidos pela Polícia Legislativa.
O caso mais emblemático desse acontecimento foi o desentendimento de uma manifestante, que confundiu um estande em homenagem ao Japão com a bandeira comunista. Mais do que as imagens e as asneiras vistas nesse acontecimento, é a frase anônima “nossa bandeira jamais será vermelha” que me chama a atenção. Ela atravessa os vídeos sobre a ocupação e chama a minha atenção porque há nela uma incredulidade, um ponto de afirmação magoado nas entrelinhas. De repente algo novamente se esgarçou. E este algo considerado inaceitável se explicita nessa frase emblemática marcando e determinando um inimigo externo: a esquerda brasileira.
Era de se imaginar o avanço do conservadorismo no país, já que o mesmo está ocorrendo em muitos outros países. Entretanto, se o mundo vive uma onda conservadora, nós parecemos estar na crista dela. Uma de suas principais facções marca presença intensificando o processo por meio de uma “histeria anticomunista”. As questões políticas e econômicas que permeiam os posicionamentos conservadores de nossa época são, assim, acentuadas por um sentimento anticomunista. Estão incrédulos com a insuficiência das instituições públicas. Essa sensação de incredulidade foi fermentada ano a ano por um sistema de paralisias que a política brasileira entrou nos últimos três anos, em meio ao qual cada vez mais o legislativo e, ao final, o próprio executivo, ficaram engessados – o que culminou na hegemonia do judiciário aparecendo agora como um poder a frente dos demais. Não é à toa a idealização de magistrados ligados o poder judiciário, que hoje ocupam os espaços de representação dos anseios de uma parte significativa da população. Muitas pessoas creem, portanto, que aqueles que integram essa esfera do Estado – juízes, procuradores, desembargadores, defensores públicos, delegados e outros – estão e têm o dever de fazer uma “lavagem à jato” do sistema político do país.
O mais lamentável é que muitos integrantes do sistema judiciário adotam o papel de “paladino salvador da pátria”. Da cúpula do Judiciário à sua base, segmentos dessa instituição valem-se de suas posições para de maneira quase unilateral denunciar, investigar e julgar pessoas que, na visão deles, atentam contra a ordem dominante, sendo a esquerda o principal alvo. Prendem, intimam judicialmente, vazam provas coletadas em investigações, monitoram as redes sociais dos enquadrados nas listas do “perigo vermelho”, enfim, fazem uma série de medidas consideradas “dentro da lei” para coagir aqueles vistos como “subversivos”. Atacam de políticos conhecidos nacionalmente à jovens estudantes, reitores de universidades, artistas, amendontrando a todos com os seus documentos marcados com carimbos oficiais e, assim, massacram o futuro de uma geração de brasileiros.
Ninguém precisa ser especialista em direito para saber que essas ações carregam problemas jurídicos graves. Práticas políticas questionáveis como essas, assim como o vazamento seletivo de informações de investigações e um abuso de prisões preventivas e de delações, perseguição de artistas, estudantes e professores – entre outras categorias – que se manifestam contra o pacto oligárquico, criam um clima ‘schmittiano’ de suspensão da lei, intensificado por uma relação promíscua entre Judiciário e ‘grande mídia’. Até as pedras do calçamento viram as redes corporativas de notícias receberem de investigações uma série de informações, delações, áudios vazados e, com todo esse aparato, cobrirem exaustivamente as investigações, explorando tudo em seus mínimos detalhes e, quase sempre, fazendo ilações, apostando em denúncias, até condenando moralmente os envolvidos antes do julgamento.
Tudo indica que as cruzadas anticomunistas se tornarão cada vez mais frequentes nas ruas bytes e de asfalto do Brasil – em novas e ferozes versões –, especialmente agora que está aprovada a “Lei Anti-terrorismo”, escrita e aprovada no segundo mandato de Dilma Rousseff; essa lei é uma das medidas do “campo legal” promovida para criminalização de manifestantes e movimentos sociais. Com esses “aparatos legais”, intimam jovens e velhos de mãos desarmadas, por medo das palavras de uma gente que não faz o jogo sujo dos poderosos e que não lambe as botas de duran. Por tudo isso, arriscaria dizer que a liberdade ideológica e de expressão determinada pela Constituição está sendo solapada na prática do dia a dia.
Ainda que avance a cruzada anticomunista e também a anti os manifestantes que se localizam noutras esferas do espectro ideológico – como os companheiros anarquistas –, a Casa Grande se ilude ao crer que estamos acuados. Todos nós estamos com a cabeça já pelas tabelas por causa da exaberção do preconceito classista e da amargura provocada pela consciência emergente de injustiça social. Ao trabalhador que corre atrás do pão, é humilhação de mais que não cabe neste refrão. Engana-se quem acha que, diante de tudo isso, ficaremos quietos. De fato existe uma parte da esquerda (melancólica) que está acuada, mas também há uma frente se formando que não deixará pedra sobre pedra até que ocorra a decomposição do instituído.
Estamos gradativamente entendendo com mais clareza que o mundo de hoje é apenas um momento do longo processo histórico e a convivência pode sim ser mudada. Estamos gradativamente compreendendo que podemos e devemos botar de pé uma outra sociedade, uma sociedade que opere em outra lógica, porque a atual que temos, profundamente mergulhada em injustiça social, está nos matando. Se enganam, assim, as múmias que acham que os últimos acontecimentos marcaram o fim da história e que agora podem tomar para si os recursos públicos e fazerem com eles o que bem entenderem. A história não está dada e a luta mal começou. Não adianta vir com um cale-se, pois, como na lenda da “Hidra de Lerna”, onde abatem uma cabeça, nascem milhares de outras. Estamos, enfim, cada vez mais entrincheirados com as armas da crítica e prontos para o combate.
Assumimos essa postura porque não existe mais espaço para conciliação de classes. Não existe mais espaço para o discurso do nós, sem nós. Um desejo de reconfiguração da cena política, portanto, cresce a cada dia. Não aceitamos mais a velha ordem das coisas e do progresso para os mesmos de sempre. Se não for para todas e todos, não será para ninguém. E não existirá anticomunismo que resista a força das exigências de reconstrução política, de eliminação da corrupção e do descontentamento muito difundido com relação aos mecanismos políticos, que percorrem de alto à baixo a população brasileira. Esse desejo de mudança corroerá as estruturas. Nesse processo, podem até tentar nos enterrar, mas saibam desde já que somos sementes.
*João Elter Borges Miranda é professor de história formado pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e milita na Frente Povo Sem Medo e Intersindical.