O passaporte brasileiro de Kim Jong-un e as perguntas sem respostas
O passaporte brasileiro de Kim Jong-un: quando falarmos de "fake news", precisamos lembrar que muitas vezes os veículos de comunicação mais tradicionais são capazes de, voluntariamente ou não, produzi-las
Haroldo Ceravolo Sereza, Opera Mundi
Agências de notícias e grandes veículos de imprensa vêm atacando as chamadas “fake news” e jogando a responsabilidade por elas numa grande maçaroca que mistura criadores de perfis em massa para difundi-las, falsificadores de dados da realidade, agências de notícias de países “inimigos” (Rússia especialmente) e, de quebra, o jornalismo independente.
Mas vamos ao caso do passaporte de Kim Jong-un, divulgado por uma das maiores empresas de jornalismo e comunicação do mundo, a Reuters – que integra um conglomerado supostamente respeitável, que publica notícias, mas também livros, bases de dados de legislação, manuais de direito e administração etc. etc. etc. (talvez esteja faltando mais algumas linhas de etc. neste parágrafo).
Pois bem, ainda que um dia Kim Jong-un tenha usado um passaporte brasileiro, a publicação dessa notícia pela Reuters desrespeita qualquer sentido editorial, qualquer regra de boa conduta jornalística. O fato pode vir a se provar verdadeiro – o que, acredito, tem pouca chance de acontecer -, mas a divulgação da reportagem que circulou pelo mundo é um escândalo em si.
Digo isso como alguém que, no perfil pessoal, compartilhou a notícia. Não sou um novato na área: trabalho com jornalismo há 24 anos, já fui redator, repórter, correspondente, diretor de redação, pesquisador na área de literatura e de história – tenho também diploma de brigadista de incêndio e massagem terapêutica. Sou o que os jornalistas antigamente chamavam com respeito de “puta velha“: já vi muita coisa. E ainda assim, num primeiro momento, com a chave profissional desligada, caí na armadilha da Reuters e cheguei a compartilhei a nota original, em inglês (já excluí da minha TL).
Antes de responder à pergunta “por que caí“, vou dar uma voltinha, e explicar os problemas da notícia, por ordem de relevância e apresentação da apuração:
1) A fonte mais importante, pelo menos na ordem de relevância escolhida pela Reuters, é anônima e, em tese, fortemente interessada na divulgação de que Kim passeava por um mundo inseguro tentando chegar à Disneylândia (isso é sarcasmo, a Disneylândia não é citada no texto). Não se diz se a fonte é norte-americana ou britânica, por exemplo, mas sabemos que ela é uma “alta fonte de segurança ocidental”: “Eles usaram esses passaportes brasileiros, que claramente mostram fotos de Kim Jong-un e Kim Jong-il, para tentar obter vistos de embaixadas estrangeiras”. Não apenas isso, a fonte anônima faz uma avaliação da política interna norte-coreana baseada no nada: “Isso mostra seu desejo por viagens [oi?], e aponta para as tentativas da família governante de construir uma possível rota de fuga [para quê? não é preciso explicar, nem para a fonte, nem para a Reuters]. Por segurança da fonte, ou própria, ou por algum tipo de encabulamento, o jornalista da Reuters preferiu omitir sua origem.
2) Nem Coreia do Norte, nem Brasil confirmaram o uso do passaporte brasileiro falsificado.
3) Uma outra fonte, brasileira, que também falou em condição de se manter anônima, disse que “os dois passaportes em questão eram documentos legítimos quando enviados em branco para emissão em consulados”. Ou seja, basicamente a fonte afirmou que o número do passaporte existe e que o documento um dia esteve em branco. Não há nenhuma informação relevante aqui, a não ser a que os números dos passaportes – no caso de Kim Jong-Un, CE 375766 – respondem às regras de numeração da Polícia Federal. Não há nem mesmo uma apuração para dizer se Antonio de Souza e Silva, que assina o passaporte do atual presidente coreano, servia em Praga (República Tcheca) em 1996, onde e quando supostamente foram emitidos os documentos.
4) Quatro “fontes de segurança europeias” – ou seja, não sabemos nem suas nacionalidades, nem se trabalham para o mesmo país, nada, nada: podem ser quatro amigos da fonte um – disseram que, com esses passaportes, Jong-un e Jong-il pediram vistos. As quatro fontes não disseram ao jornalista nem ao menos se os vistos foram concedidos. Ou seja, de novo, não há uma informação realmente relevante, que permita qualquer rastreamento das viagens dos dois ou pelo menos de onde a informação poderia ser checada.
5) Na falta de informação relevante, temos o Google, né? O jornalista lembrou e procurou a notícia de que o jornal Yomiuri Shimbun falou em 2011 que Jong-un foi a Tóquio em 1991 usando um passaporte brasileiro. A Reuters diz malandramente que tal fato ocorreu “antes da data de emissão impressa nos dois passaportes”. Bom, eu gostaria de acrescentar o tempo entre uma coisa e outra: cinco anos. Ou seja, não há nenhuma prova empírica que ligue a suposta viagem ao suposto passaporte. Mas por que aceitar os fatos se uma suposição alimenta a outra suposição, e assim as duas saem, simultaneamente, não comprovadas, mas aparentemente mais fortes?
6) “O passaporte de Kim Jong-un foi emitido em nome de Josef Pwag, com data de nascimento de 1º de fevereiro de 1983”. Por que raios um brasileiro, nascido em São Paulo, ainda que de ascendência coreana, escolheria o nome Josef e não José? Essa pergunta o repórter da Reuters não se faz, talvez porque tenha ouvido falar que a sonoridade do português é semelhante à do russo.
7) Após uma série de suposições sobre o nascimento de Jong-un sem nenhuma relevância para o caso, vem o suprassumo da apuração: “A primeira fonte de segurança” (aqui, temos um eufemismo que esconde até mesmo que ela é ocidental, quem sabe o leitor já esqueceu a essa altura) “se recusou a descrever como as cópias dos passaportes foram obtidas, citando regras de sigilo” [oi?]. E a cereja do bolo: “A Reuters viu apenas cópias dos documentos, de forma que não foi capaz de discernir se foram adulteradas”.
Pronto, na última linha, a confissão de que a matéria é impublicável, pelo menos no estágio atual de apuração. Qualquer mané em Photoshop faz uma ficha falsa da Dilma – digo, um passaporte brasileiro de um Kim.
Por que caí nessa? Porque histórias saborosas são assim. Elas se parecem verdade. Jornalistas gostam de publicá-las e, quando elas são boas demais, fecham muitas vezes involuntariamente os olhos para toda a manipulação que pode estar sendo feita com eles.
Essa é, no entanto, uma leitura ingênua minha. Pode muito bem ter sido um relaxamento de precisão da Reuters. Mas as agências de notícias internacionais tantas outras vezes se prestaram, no passado, a manipulações programadas.
O caso que sempre me vem à cabeça é a da lista da Operação Colombo, também conhecido com “O caso dos 119”. Numa operação da Dina (Direção de Inteligência Nacional) chilena, em 1975, duas publicações, “Lea” (da Argentina) e “Novo O Dia” (brasileira, de Curitiba, e que só teve uma edição), publicaram uma lista de desaparecidos políticos que teriam sido, supostamente, assassinados pelo Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR) chileno. Na verdade, eles haviam sido assassinados pela própria ditadura do general Pinochet. A ação visava ao mesmo tempo encobrir os assassinatos praticados pelo Estado e envenenar a relação entre os grupos de esquerda que lutavam contra o regime.
Prontamente, a agência de notícias norte-americana United Press International (UPI), de grande relevância na época, divulgou as informações, sem nenhuma checagem adicional, tornando “verdade” aquilo que publicações para lá de suspeitas afirmavam sem nenhuma prova. Provavelmente, a UPI atuou sob influência direta ou indireta da CIA, a “Dina” norte-americana.
Por isso, quando falarmos de “fake news”, precisamos lembrar que muitas vezes os veículos mais tradicionais são capazes de, voluntariamente ou não, produzi-las.
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